terça-feira, 7 de dezembro de 2010

Inovação com a marca de Gandhi

Indianos ensinam ao mundo como produzir mais com menos para mais pessoas

Por Alexandre Teixeira

Depois do belicoso Sun Tzu e sua arte da guerra, é a vez de Gandhi ser adaptado para o mundo da gestão. O cientista indiano Raghunath Mashelkar, um especialista em polímeros que se reinventou como guru da administração de empresas, propõe uma abordagem diferente de Pesquisa e Desenvolvimento, inspirada pelo ícone maior do pacifismo. Ele a batizou de engenharia gandhiana e a ancorou em realizações da indústria indiana, como o Tata Nano, carro mais barato do mundo, uma vacina efetiva contra a hepatite B que custa um quadragésimo das existentes no Ocidente e uma técnica de cirurgia de catarata cujo custo é um centésimo do cobrado em outros países.

Mashelkar tem seu nome associado ao Laboratório Nacional de Química da Índia, mas hoje é presidente da Global Research Alliance, uma rede de institutos de P&D dos Estados Unidos, da Europa e da Ásia. Ele cunhou o termo engenharia gandhiana para definir inovações que permitam conseguir mais com menos para mais pessoas. Segundo Mashelkar, a frugalidade necessária para tanto expressa um dos ensinamentos do herói da independência indiana: “A Terra provê o suficiente para satisfazer as necessidades, não a ganância, de todos os homens”. Trata-se, portanto, de inovação inclusiva. Produtos e serviços que melhorem a vida de todos – inclusive, mas não somente, as dos 4 bilhões de pessoas que vivem hoje com menos de dois dólares por dia. Isto significa, sim, custos ultrabaixos. Mas o binômio perseguido é “baixo preço, alto desempenho”. Às vezes, com alta tecnologia.

“Um novo sistema de localização por satélite de zonas pesqueiras elevou os níveis de produtividade, e portanto de renda, de milhões de pessoas ao longo da costa indiana que dependem da pesca para sobreviver”, disse ele em entrevista à revista strategy + business, da consultoria Booz&Co. Cientistas medem a quantidade de clorofila na água e a temperatura na superfície do mar para detectar a concentração de peixes em uma determinada área. A informação é, então, transmitida para painéis eletrônicos instalados nos piers onde se concentram os pescadores e, por mensagem de texto, para os celulares daqueles que já estão no mar. Bom negócio tanto para o provedor de notícias por celular (neste caso, a Bharti Airtel) como para os pescadores.

Na definição de Mashelkar, inovação é fazer as coisas de um jeito diferente para fazer uma grande diferença. Muito bem, a estratégia de Gandhi, que mobilizou milhões de indianos em torno da ideia de resistência pacífica e da não violência, foi um jeito diferente de promover uma rebelião. E fez uma grande diferença, na medida em que resultou na retirada do poderoso império britânico do subcontinente.

Décadas antes da independência, no início do século 20, Jamshedji Tata foi ridicularizado quando anunciou sua intenção de produzir aço na Índia. Informado de seus planos, Sir Fredrick Upcott, o inglês que presidia a Indian Railways, desdenhou do projeto e disse que comeria cada grama do metal produzido no país. Um século depois, a Tata Steel produz aço em várias partes do mundo, a preços imbatíveis, e é dona da Corus Steel, um antigo ícone da siderurgia britânica. De modo semelhante, ainda que muitas décadas mais tarde, houve deboche quando Dhirubhai Ambani – fundador do Grupo Reliance, um dos três maiores conglomerados indianos – disse que uma chamada de longa distância deveria custar o mesmo que um cartão postal. Hoje, a Índia tem as menores tarifas para ligações telefônicas, os celulares mais baratos e a base de assinantes que mais cresce no mundo.

A proporção que interessa a Mashelkar é: preço versus desempenho. É possível oferecer por US$ 100 um laptop que originalmente custa US$ 2 mil, sem comprometer a performance de suas funções básicas? Nicholas Negroponte, do MIT, fixou esse alvo já há um bom tempo e ainda não o atingiu. Vinay Deshpande, da indiana Encore, foi quem chegou mais perto. Ele criou o Mobilis, que desde 2009 é produzido na Malásia e cujo preço já baixou dos US$ 200.

Fazer mais com menos, para muita gente, é a verdadeira vocação do segundo país mais populoso da Terra. “O desafio indiano é que não apenas temos de ter inovação e paixão, mas também compaixão”, disse uma vez Mashelkar. A beleza desse conceito é que ele não é válido apenas para a Índia. Nem só para países emergentes. “Se você sente que a engenharia gandhiana é para os pobres do mundo, lamento. Você está enganado”, Mashelkar costuma dizer. Fazer mais com menos, para mais gente, é um imperativo universal quando os recursos não renováveis estão desaparecendo rapidamente.

Este químico indiano tem uma visão de futuro peculiar. Para ele, tecnologias de reciclagem e reprocessamento irão se tornar dominantes à medida que o cenário internacional de abundância dê lugar a um de escassez. Como dizia C.K.Prahalad, suas aspirações têm de ser sempre maiores que seus recursos. Se e quando a regra do jogo for oferecer produtos e serviços bons e baratos para tantos consumidores quanto possível, talvez mesmo o marketing tenha de ser redefinido, e o valor das marcas passe a ser medido de outra maneira.

Mashelkar e Prahalad, que morreu no ano passado, escreveram juntos um artigo pra a Harvard Business Review intitulado “O Santo Graal da Inovação”. A ideia do ensaio, em resumo, é a de que preço baixo e sustentabilidade estão substituindo preço alto e abundância como motores da inovação. Mas poucos executivos sabem lidar com essa virada. As empresas precisam tornar seus produtos acessíveis para mais gente, vendendo-os mais barato e produzindo-os com menos recursos. “Enquanto essa obrigação está provando ser um pesadelo para muitas companhias ocidentais, nossa pesquisa sugere que uns poucos pioneiros em países em desenvolvimento estão mostrando o caminho”, escreve a dupla. “Em nenhum outro lugar isso é mais evidente do que na Índia, que não era exatamente famosa pela inovação até recentemente.”

AS CINCO REGRAS DA INOVAÇÃO GANDHIANA

1. Desenvolva um profundo compromisso de servir os que não estão servidos
2. Articule e abrace uma visão clara
3. Fixe metas muito ambiciosas para nutrir um espírito empreendedor
4. Aceite que restrições irão sempre existir e opere criativamente dentro delas
5. Fique nas pessoas, não apenas na riqueza e nos lucros do acionista

Na essência da engenharia gandhiana está a tradição ancestral do jugaad, uma versão indiana do jeitinho brasileiro, explicada pelos pesquisadores como a habilidade de desenvolver alternativas e improvisações para superar a falta de recursos e resolver problemas aparentemente insolúveis. Reprocessado, o jugaad deu origem, entre outras maravilhas, a modelos de negócios disruptivos que se apropriam de tecnologias ocidentais e as utilizam como base para inovações que resultam em barateamento além do imaginável, sem prejuízo da qualidade. Empresas como Wipro e Infosys fazem fora de casa uma parcela expressiva do trabalho de programação e valem-se do talento de baixo custo dos engenheiros indianos para criar software e serviços com um custo-benefício imbatível. O que muda, no caso, é a organização do trabalho.

E o modelo brasileiro de inovação, adapta-se à engenharia gandhiana? Potencialmente, sim. Mas as iniciativas nessa direção ainda são tímidas, para dizer o mínimo. “As empresas brasileiras”, afirmou a revista The Economist duas semanas atrás, “estão fazendo muito menos do que suas rivais na Índia e na Indonésia para dominar a arte de produzir bens frugais para as massas”. Não que o tema seja inédito por aqui. “Ideias sábias e produtos direcionados aos pobres abundam no país”, diz a The Economist, citando exemplos como o mini-freezer da Whirlpool e os pontos de atendimento flutuantes mantidos pela Nestlé e pelo Bradesco no rio Amazonas. O grande senão é que a maioria dessas inovações são trazidas por estrangeiros. Faz falta para o país uma versão brasileira da engenharia gandhiana.

“QUALIDADE É INEGOCIÁVEL”
O criador do conceito de “engenharia gandhiana” diz que fazer mais barato não é suficiente

Ramesh Mashelkar, o cientista indiano que cunhou a expressão engenharia gandhiana e defende uma forma de inovação centrada em fazer mais com menos para mais gente, sustenta que sua concepção de negócios é diferente da engenharia frugal, muito em voga na Índia. Qualidade e desempenho, segundo ele, são inegociáveis nos produtos e serviços inspirados pela filosofia de Mahatma Gandhi, o grande líder pacifista da independência indiana. Nesta breve entrevista concedida a Época NEGÓCIOS a partir de seu escritório em Pune, na Índia, Mashelkar, hoje membro da Global Research Alliance, diz que o Brasil tem potencial semelhante ao da Índia para inovar com os mais pobres em vista.

ÉPOCA NEGÓCIOS – Qual é a diferença entre engenharia gandhiana e engenharia frugal, se é que há alguma?


Ramesh Mashelkar – A engenharia frugal é baseada em minimizar despesas, mesmo que às custas de reduzir o desempenho [dos produtos e serviços assim criados]. Então, “menos por menos” é aceitável, desde que sirva para “mais e mais” pessoas. A engenharia gandhiana é inteiramente centrada em “mais com menos para mais pessoas”. Ela insiste em oferecer alto valor emocional e funcional mesmo para as pessoas na base da pirâmide.

EN - Qual um bom exemplo de produto ou serviço nascido da engenharia gandhiana?
RM - A Aravind Eye Care [um centro oftalmológico indiano], que oferece por algo entre US$ 30 e US$ 300 cirurgias de catarata que custam US$ 3000 internacionalmente. Eles não oferecem baixa qualidade. Na verdade, uma comparação com a Faculdade Real de Cirurgiões Oftalmologistas, no Reino Unido, mostra que o desempenho da Aravind é melhor pelos parâmetros pós-operatórios.




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